Como se tirado de um conto fantástico, a amizade entre Guimarães Rosa e José J. Veiga surgiu de um fato intrigante. Dois gênios da ficção brasileira, responsáveis pela literatura mais pulsante de nossas letras no século XX.
Triiim. Triiiiim. Triiiiim.
–Alô?
– Dona Clérida?
– Sim, sou eu.
– Desculpe incomodar, eu me chamo Aracy. Meu gato não está bem e eu liguei pro doutor Nilo, mas ele não pode atender, disse que a senhora entendia tanto de gato quanto ele.
– Mas eu não sou veterinária.
– Ele disse que a senhora podia ajudar.
Aracy descreveu os sintomas, Clérida aconselhou por telefone, o gato estava bom em pouco tempo e as duas ficaram amigas. Aracy ligou de volta, muito agradecida, chamando Clérida para ver os gatos. Para o passeio, ela levou o marido. Na sala de estar, entre quitutes e palestras sobre felis catus, Aracy descortinou-se como Aracy Guimarães Rosa.
– É parente do escritor? – perguntou o marido de Clérida.
– Mulher dele!
Tempos depois, Guimarães Rosa (marido de Aracy) e José J. Veiga (marido de Clérida), dois dos maiores escritores brasileiros, pela sutil e refinada ironia do destino, encetaram uma conversa que os conduziria a uma amizade de mais de vinte anos. José J. Veiga só tem esse sonoro Jota no meio do nome porque Rosa, crente das forças da lua, entendido dos seres místicos e de numerologia, fez cálculos e cálculos com o nome completo de Veiga até chegar à conclusão:
– Põe José J. Veiga, vai ser bom pra você.
Os Cavalinhos de Platiplanto, publicado em 1959 e o primeiro livro de Veiga (que estreou na literatura tardiamente com 49 anos), foi um estouro. Até hoje a crítica considera uma de suas obras mais geniais. Lá já podemos ver um embrião do que seriam seus próximos romances: a alegoria, o fantástico, as situações absurdas e insólitas, a linguagem simples de quem fala fizeram de A Hora dos Ruminantes (1966), Sombras de Reis Barbudos (1972) e Aquele mundo de Vasabarros (1982) obras-primas de nossa ficção – embora poucos conheçam sequer que existiu José J. Veiga, um goiano de Corumbá de Goiás, funcionário público e escritor de doze livros imaginativos.
Em 1972, a delegação israelita sofreu um atentado nos Jogos Olímpicos de Munique, meu pai não conhecia minha mãe ainda e eu nem mesmo sonhava em nascer quando os ruminantes já haviam invadido tudo, em Manarairema de A Hora dos Ruminantes, e a Companhia de Melhoramentos espalhava o terror e a opressão na cidade de Lucas, o narrador de Sombras de Reis Barbudos. Não, caro leitor, as efabulações de Veiga não são coisa de criança – como muitos pensam – nem se restringem a uma alegoria sobre a política da época, que evidentemente acabou contaminando a leitura dos livros.
– Mas meu projeto de escrevê-los não era ficar na mera denúncia de um regime de opressão: se fosse, os livros ficariam datados quando o regime se exaurisse, como se exauriu (aliás, durou mais do que eu calculava). O meu projeto era mostrar situações mais profundas do que aquelas impostas por um governinho de uns generaizinhos cujos nomes a nação depressa esquecerá.
No ano de lançamento de Sombras, lamentava-se já o quinto ano da morte de Rosa.
– As pessoas não morrem, ficam encantadas – poetizou a famosíssima frase no discurso de posse da Academia Brasileira de Letras, que ele adiou durante quatro anos até não poder mais. – A gente morre é pra provar que viveu!
Não se sabe se as cartas, os búzios, as estrelas ou se as linhas de sua própria mão lhe falaram dos perigos contidos naquela cadeira que o imortalizaria. Mas exatos três dias depois de ter tomado posse com um discurso emocionado morreu sozinho em seu apartamento em Copacabana. Aracy tinha ido à missa; voltou quando não havia mais tempo de pedir socorro. A indicação ao Prêmio Nobel de 1967, feita por seus tradutores francês, alemães, italianos, foi cancelada por sua morte repentina.
Restava à mulher as histórias do marido, que ele lia em voz alta. José J. Veiga diz que Clérida e Aracy se debulharam em lágrimas com o pezinho estropiado de Miguilim. Talvez Guimarães Rosa tenha sido o Joyce brasileiro pelo trato com a linguagem; fez Riobaldo se apaixonar por Diadorim em Grande Sertão: Veredas (1956) e abalou as estruturas literárias do país. Diplomata nas letras e na profissão, na amizade Rosa gostava mesmo era de provocar, de discutir, contrariar. Um dia engrossava o coro das vozes que defendia Getúlio, outra hora achincalhava o estadista com toda a sorte de críticas.
– Que Getúlio nada! Getúlio é um safado! – ele disse para o amigo quando Veiga, certa vez, tentou rever a opinião que vinha preservando.
E Veiga só pode se lembrar de tudo com um sorriso nos lábios, na última entrevista que deu em vida no final da década de 1990. A velhice trouxe a ele, junto com as lembranças, o gosto de pequenos prazeres, de cachimbo e de fumar em casa com todo um ritual. Continuava com a perspicácia de sempre:
– Eu observo o comportamento da juventude, comparo com o que era no meu tempo... É sempre a mesma coisa passando-se em outra época, com outros ingredientes, mas, no fundo, é sempre o ser humano querendo amansar um pedaço do mundo para nele se instalar e ser o mais feliz possível.
Foram amigos por tanto tempo porque eram parecidos também na arte. Falavam de gente simples, do cantar do sertão, das noites em roda da fogueira, dos diabos e dos ungüentos medicinais, de pessoas que voam porque é o que lhes resta e ninguém poderá lhes tirar o poder de voar, de jagunços magicamente apaixonados num pedaço árido de chão, de meninos do interior e céus estrelados. Ah, Clérida, Aracy e essa paixão por gatos...