quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Relato histórico, crônica de costumes e retrato humano.


Marjane Satrapi é iraniana, mas vive em Paris agora. Tem mestrado em Comunicação Visual pela Escola de Belas Artes da Universidade Azad de Teerã. É novelista gráfica, autora de histórias infantis e de uma autobiografia em quadrinhos peculiar, que virou filme premiado na edição de 2007 do Festival de Cannes, além de ter sido indicado para Oscar de melhor animação em 2008. A animação, de pouco mais de uma hora e meia, estréia por aqui a partir do dia 22 desse mês.

E é fantástica.

A adaptação para cinema dos quatro volumes da novela gráfica Persepolis é impecável. Impecável. De traço reducionista, com boa parte do tempo de película em preto&branco, o impacto visual da memória de Marjane é hipnotizante. Há certo conflito das legendas contra os cenários muito bem trabalhados e traços vivos que percorrem o filme. Junto da música, das vozes e da narração, tudo se torna um grande conjunto que nos permite se emocionar com a história dessa iraniana que viu a queda do regime do Xá Pahlavi aos nove anos, que viveu a ditadura pós-revolução durante o início da sua adolescência, e que se torna refugiada na Áustria durante a juventude, além, claro, do retorno a um Irã tomado pela crise e repressão dos pasdarans (os “Guardiães da Revolução”).

Persepolis é um conjunto, uma obra de arte de múltiplos sentidos. Pode-se dividir o filme em três partes: o fim infância e pré-adolescência de Marjane, a juventude da moça, e o início da sua vida adulta.

Na primeira, é evidente o relato histórico de uma família de intelectuais sobre a Revolução Islâmica Iraniana – que transformou o Irã Monarquista em uma República Islâmica, liderada pelo Aiatolá Khomeini durante os primeiros anos de instalação do novo regime. Marjane exibe no filme a empolgação das massas para a instalação de um novo Irã, nas promessas de modernização do país e na criação de uma sociedade mais justa. Porém, os anos após a revolução são marcados pela criação de uma sistema teocrático que persegue seus possíveis opositores e não leva melhorias para toda a população. É notável que a infância da autora foi marcada pelas prisões de parentes próximos e pelo convívio com o medo. No meio de todo esse cenário tenebroso, ainda é possível ver o espírito de resistência da protagonista, seja nas brincadeiras com temática de guerra com as outras crianças, ou consumindo os produtos da cultura ocidental, vista como subversora dos valores da Revolução.

Com o aumento das perseguições a quem aparentasse ser opositor ao regime, os pais de Marjane decidem mandá-la para a Europa. Temos aí a segunda parte do filme, um relato mais intimista da autora. Os encantamentos, a nova terra, os novos costumes, as leituras de autores consagrados, as decepções amorosas; tudo isso é relatado pela protagonista e deixa claro, mais adiante, um sentimento de retorno às origens – simbolizado pela avó dela.

Talvez seja essa uma das mais principais figuras do filme: a avó, vista como um símbolo de experiência, sabedoria e costumes. Com o retorno da protagonista para o Irã, sendo essa a terceira parte, fica mais explícito que o filme não centra só nos efeitos da Revolução Islâmica e nas diferenças culturais entre Irã-Ocidente. Entrevistada, Marjane Satrapi disse: “Se as pessoas virem o filme e disserem que essas pessoas são seres humanos como nós, o filme teve sucesso”. Nele vemos algo diferente do estereótipo oriente-médio com o qual somos bombardeados. Vemos pessoas que, mesmo sob forte opressão, se arriscam para festejar um pouco e se reunir, mesmo que isso custe a vida de alguns. É um belo retrato humano, uma história sobre integridade e vontade de viver. E Marjane, de forma completa, conseguiu sucesso.

Notas:
- Houve rumores de que a animação seria propaganda anti-Irã. Assistindo, é possível ver que há relatos bem audaciosos, como a confirmação de que a C.I.A. esteve presente durante a Revolução Islâmica de 1979 e que ajudou a treinar torturadores. Além disso, o pai de Marjane, durante o filme, relata a intervenção britânica no golpe de Estado que levou o Xá ao poder.
- O filme gerou uma grande mobilização de mulheres na Europa para levarem adiante a arte de Marjane Satrapi. Para que estreasse nos E.U.A., mais outra batalha para a popularização aconteceu, em Hollywood, envolvendo algumas atrizes, uma empresa produtora de Steven Spielberg e a filha de um dos chefões da Sony Pictures - que comprou os direitos sobre a produção.
- Sean Penn, Gena Rowlands e Iggy Pop doaram suas vozes para a versão inglesa do filme (originalmente em francês).
- Sobre a atual situação do Irã, pode-se ler aqui, aqui e aqui.

-E o trailer, em áudio original e legendas em inglês, você assiste por aqui mesmo:

3 comentários:

Márcio Moreira disse...

Muito boa, a resenha. A visão sobre o Irã de uma nativa refugiada e ainda por cima mulher é coisa das mais interessantes, em especial hoje.
Fiquei morrendo de vontade de ver...

Lara disse...

"Nele vemos algo diferente do estereótipo oriente-médio com o qual somos bombardeados. Vemos pessoas que, mesmo sob forte opressão, se arriscam para festejar um pouco e se reunir, mesmo que isso custe a vida de alguns. É um belo retrato humano, uma história sobre integridade e vontade de viver."



Acho que é isso que vai fazer a diferença no filme. Existia o risco de que, por mais inovadora que fosse a proposta, o filme caísse no clichê da produção bélica do Irã. Viraria filme na lista do orkut dos Cult que são fãs do Abbas Kiarostami ou até mesmo dos leitores de "O Caçador de Pipas" que acham que o Oriente Médio é todo igual, que Irã, Iraque, Paquistão é tudo a mesma coisa, pois guerra é guerra.

Já estava curiosa antes, quando você tinha me mostrado o video. Agora, então...


Ah, que eu aprenda a resenhar. Amém.

Anônimo disse...

Bela resenha, Yuri! Fiquei com vontade de ver o filme.