sábado, 31 de maio de 2008

Da arte de cogitar - parte 2


Evadir-se de si e esquivar-se dos outros, eis aí a fórmula para se dormir o sono dos justos.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Da arte de cogitar


Ninguém sabe o que sou quando matuto sobre Machado de Assis.

sábado, 24 de maio de 2008

Hi, my name's Devil.

O que é o ARMAGEDOM?

Não sei. Ela sabia. Bateu na porta para explicar. Disse que basicamente era quando os anjos desceriam do céu para pôr fim a tanta baldeação. Em resumo foi isso. Ao contrário das outras vezes, não fiquei assustado. Nem aterrorizado, obviamente. Apenas pisquei três ou quatro vezes, assenti com a cabeça, cocei as pernas, impaciente. Bocejei? Não lembro, mas é provável que sim. Não consigo evitar abrir a boca, fechá-la e voltar a abri-la seguidamente quando algo ou alguém está me aporrinhando. Sei que não é muito legal demonstrar enfaticamente que não se está para chateações. Sei disso. Mas não me importo.

Ela estava acompanhada. Usava óculos escuros, camisa e saia comprida. Mas apenas acho que ela usava saia. No fundo, porém, dou minha cara a tabefe se ela não estivesse usando um saião desses bastante comuns entre mulheres que crêem em muitas coisas, mas acima de tudo em uma: mais cedo ou mais tarde, Deus nos matará. Portanto, acho que usava saia porque tava na cara que ela usava saia comprida. Os óculos eu pude ver. Carregava uma bolsa preta a tiracolo e uma bíblia, acho que tinha um livro preto cujas chances de ser uma bíblia eram razoáveis embora não tenha mesmo certeza se de fato se tratava de uma. Não vi as letras douradas nem a lombada vermelha. Na verdade, não se trata da lombada propriamente dita, mas da parte externa das folhas. Ou seja lá que outro nome aquilo venha a ter.

Como estava só de calção, não abri a porta de casa. Fiquei olhando através das persianas. Não considero isso falta de educação. Não pedi para ter uma lição sobre armagedom pouco antes do almoço. Mesmo que não tivesse outra coisa a fazer, teria sido de bom tom não abrir a porta e me limitar a observá-las de dentro de casa. Como fiz. Não me arrependo. Se os anjos estão mesmo vindo a 500 metros por segundo em nossa direção, mais velozes e mais furiosos do que uma matilha de torcedores do Fortaleza, não há mais nada a ser feito. Exceto comer uma última rodada de sushi. Aqui na Jovita Feitosa tem um bem legal. As garçonetes são um pouco piradas, nos tratam como se fôssemos amigos de infância, mas o lugar é interessante.

VOCÊ COSTUMA LER A BÍBLIA? ACREDITA NELA?

O que dizer nessas horas? Não muito, respondi algo que valia para as duas perguntas. Isso me surpreendeu. Poderia ter dito nem um pouco, nunca em toda a minha vida, nem mesmo quando tinha treze anos e me considerava um tanto retardado, apenas quando estou bêbado e compro briga com três ou cinco caras fortes, se meu pai estiver à beira da morte, sim — poderia ter dito qualquer coisa. Mas não. Disse não muito. Ela conferiu a resposta em fração de segundos e, avaliando a situação, retrucou qualquer coisa.

Ela ficou embaraçada, claro que ficou. Dava pra ver. Não podia ver a saia comprida, mas a falta de jeito ficou patente naquele instante.

Posso te dar um texto?

Claro que sim.

Você vai ler?

Leio qualquer porcaria que me cai nas mãos. Pensei, pensei mais um pouco, e disse antes tarde do que nunca. Não queria ser mal-educado.

Tudo bem, é sobre o armagedom. Aqui tem dizendo que Ele previu todas as catástrofes que estão acontecendo hoje.

Todas?

Sim, todas. Inclusive o terremoto da China.

E o de Sobral, Ele não previu? Novamente, apenas pensei. No fundo entendia que os abalos em Sobral não despertassem interesse divino. A China é um país inteiro cheio de gente saindo pelo ladrão. Sobral é apenas a terra de Ciro, Cid e Ivo Gomes.

Aí tem tudo que você precisa saber sobre o tema.

Tudo bem. Vou ler.

Se você quiser contribuir de alguma forma, nós agradecemos.

Não tenho dinheiro. Isso não apenas pensei como disse no ato. Era mentira. O livreto devia custar um, dois reais. Eu tinha algum sobrando na carteira, mas não muito. No dia anterior fora ao cinema e torrara os penúltimos centavos. Agora, só no mês que vem.

Elas foram bater na porta do vizinho. Parado no meu canto, pensando as besteiras de sempre, ouvi quando perguntaram se ele sabia o que era o ARMAGEDOM. Ele disse que sim e, sem esperar resposta, bateu a porta. As meninas seguiram em frente.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Avistado em ônibus #02

O pessoal da academia já tinha estranhado o morenão. Não que carregasse loção demais, que tivesse sua própria saboneteira de plástico laranja transparente dentro de uma bolsinha da Nike, ou que fizesse questão de se banhar depois dos circuitos de exercícios. Macho que cuidasse da aparência, homem que saísse perfumado dos exercícios, metrossexualidade... esse tipo de coisa era comum por lá. O que corria solto mesmo nas conversas cantinescas dos grupinhos de mesmas medidas e baterias de doze e dezesseis era uma vaidade mais além: todo dia de malhação o morenão sempre carregava algum livro-tijolão.
E mudava toda semana.

Ele era grande, um dos maiores da seqüência segunda-quarta-sexta, no turno da noite.
Sempre pegava o ônibus naquele horário de quinze pras dez da noite, muito perfumado, banhado, de calça de flanela e camisa sem manga. E o tijolão debaixo do braço. E era só Grande Clássico da Literatura Universal: Tolstoi, Machado, Dostoievski, Hemingway, Stendhal. O trocador desconfiava de que aquilo era pretexto, ou melhor, pré-texto, pra posar de intelectual e garantir papo com a primeira universitária arrumadinha que sentasse no banco ao lado. E aquele monte de músculo lá sabia ler!

Talvez os livros não servissem só de enfeite, ou talvez tudo aquilo se tratava de mais algumas peripécias de um sujeito de boa lábia. Cassandra, Helena, Mônica, Sandrinha, Érica ou Nádia se aproximaram muito do rapaz perfumado de pouco antes das dez da noite. A conversa iniciava sobre Natasha Rostova ou Julien Sorel. Depois trocava-se celulares e uma promessa de se encontrar naquele ônibus, naquele mesmo horário.

Era só estratégia? Ninguém sabia. Mas todo aquele jogo parecia funcionar muito bem com as jovens garotas que sentavam ao lado do morenão. Estratégia mesmo devia ser carregar aqueles livros, com aquele porte físico, num ônibus que tinha como rota o campus de humanidades da universidade federal, duas universidades particulares e um núcleo de línguas estrangeiras. Certamente não faltaria companhia para puxar assunto com a máxima bem piegas: “você acha que a Capitu traiu mesmo Bentinho?”.

cem palavras (módulo cinco)


a quentura abafada e o sol estourando luz por toda parte, refletindo nas paredes brancas, doendo na vista. peguei um ônibus pra chegar na aula. catei papel na mochila e escrevi o que pensei. minha sensação mais intensa era o calor.


Eu venho de perto do mar e atravesso o Centro pra chegar ali. onde a gente se encontra. Não vejo esses pescadores, trabalhadores do mar, mas cruzo com construtores e trabalhadores do asfalto. Estou - agora mesmo - cercada de gente vinda de partes da cidade que eu ignoro. Estamos temporariamente reunidos pelo sentido Parangaba-Mucuripe, no percurso de volta.

domingo, 18 de maio de 2008

Bolhas, bolhas, bolhas...

Bolha 1: momento “Estou perdido aqui”

Sem tempo, sem dinheiro, sem coragem de pedir carona na BR e seguir no rumo das placas, que podem levar e trazer com a mesmíssima facilidade.


Bolha 2: só agora vi

Cão sem dono é legal. Tudo nele é legal. Os atores, a paisagem de Porto Alegre, o Guaíba, as ruas, os pais de Ciro, a namorada de Ciro, a doença da namorada, o cachorro Churras, a madrugada, as cervejas, o russo, o mototaxista, a barriga enorme da mulher do mototaxista etc. Beto Brant e Ciasca acertaram a mão. Cão sem dono é baseado em Até o dia em que o cão morreu, novela do quase gaúcho Daniel Galera (Mãos de Cavalo). Foi lançado no ano passado. Interpretam o casal: Tainá Muller e Júlio Andrade.

Obs.: foi curioso ver-me perdido em algumas falas marcadamente regionais. O sotaque gaúcho às vezes dava um nó nos ouvidos.

Bolha 3: tempo perdido

Os meninos da rua são mesmo impossíveis. Jogam bola ao meio-dia. Espremem-se numa faixa de sombra que cobre o asfalto. Quando a bola é chutada para o outro lado, eles correm e voltam apressados. Jogam no mano a mano, ou seja, a disputa é individual. Do lado de fora, na calçada, outros meninos esperam a sua vez de jogar na faixa de sombra. Em pé, na porta de casa, sou testemunha de um gol claro que passou como bola na trave. “A bola bateu aqui e subiu”, defende-se um. O adversário, menorzinho, baixa a cabeça e amarga o roubo descarado. Não digo nada. Não gosto mesmo de interferir na vida dos meninos da rua. Eles que se virem com os seus jogos de bola.

À tarde, é a vez do futevôlei. Aqui ele é praticado na esquina. Não há redes nem areia de praia. Tudo é desenhado no asfalto, que, a essa altura, está bem mais frio. Os pés podem pisá-lo sem medo.

Bolha 4: sons

Domingo. A trilha sonora é pagode. Às sextas-feiras, metal. Noutras vezes, hip hop. A rua nuca ouve forró ou Chico Buarque. Vezenquando reggae.

Na esquina, grupos de homens jogam dominó e baralho. Na hora do almoço, comem sarrabulho e panelada. Bebem cerveja. À noite, muitos deles vão ao estádio assistir a alguma partida do Ceará ou do Fortaleza. Quer dizer: iam. Agora, o Presidente Vargas está interditado. Eles escutam o jogo no rádio.

Do (desnecessário) alarde - parte 4

Gosto de sussurros. Gosto daquilo falado em voz baixa, transmitido como se segredo fosse. Agrada-me o sigilo belo e profundo das coisas murmuradas; serenas palavras pronunciadas como se fossem a continuação de meus próprios pensamentos, completando-os. Ouvir a voz interna me interessa mais, mesmo quando tenho que ouvi-la em condições tão impróprias como as atuais, nas quais o barulho se faz como uma constante. Ora, se está difícil ouvir o outro, o que dirá escutar-nos a nós mesmos.

Outro dia li uma crônica do jornalista e escritor Fausto Wolff (1940) e não pude conter um sorriso (interno) de satisfação espiritual. Eis um homem que semeia a voz interna em tempos de voz alguma. Transcrevo um trecho do texto, tão sobriamente rico em sentimento. Os parêntesis são meus.

A nova geração, que nasceu depois de 1964, vem ao Veloso (bar em Ipanema, Rio de Janeiro, conhecido, nos anos 70, como reduto de boêmios e intelectuais cariocas) berrar besteiras com suas possantes motos em dia de futebol para esmagar os sacões da velharia. Uma amiga minha disse que esses moços fazem tanto empurro porque o silêncio do deserto mental os perturba e além disso têm o piupiu pequeno. Esses eunucos mentais não sabem dos fantasmas que vivem no Veloso. Os motoristas de ônibus, caso soubessem, seriam mais respeitosos. Irritados, os fantasmas de vez em quando tiram uma cadeira do lugar, dão um cascudo num adolescente, levantam a saia de alguma senhora para não serem esquecidos.

Do (desnecessário) alarde - parte 3

"O silêncio me alimenta a criatividade".

Ney Matogrosso (1941)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Do (desnecessário) alarde - parte 2


Andando pelas ruas da cidade, eu me pergunto o motivo pelo qual se faz tanto barulho por praticamente tudo. Parece-me que a lógica alvoroçada da humanidade é sempre ostentar o ruído, seja lá em qual ocasião for.

Nosso barulho só não é ainda maior porque precisamos ouvir, de vez em quando, o barulho alheio, a fim de termos um pouco de certeza de que o nosso próprio barulho está sendo minimamente compreendido por nós e pelos outros; há uma “auto-regulação barulhesca” que, ao menos na aparência, ordena o caos rumoroso de nosso santo ruído de cada dia.

Bem-aventurados os surdos, porque lhes são permitidos momentos de audição interna.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Do (desnecessário) alarde


Em uma época tão barulhenta como a nossa, busco o silêncio. Aliás, o meu silêncio é motivo de espanto para o vizinho, que veio interrogar-me, no elevador, se eu havia saído da cidade durante o fim de semana. Respondi-lhe que não, que havia ficado em casa.

Assustado, ele confessou-me.

“Mas é que como eu não ouvi nada durante todo o fim de semana, pensei que você tivesse viajado ou algo assim".

Pois é. No mundo de hoje, as pessoas espantam-se com o sossego. Ao que me parece, a simples ausência de barulho as deixam desconfiadas. Acostumaram-se com o tumulto dos tempos modernos de tal jeito que simplesmente desaprenderam a escutar o silêncio. Neste mundo turbulento, somente o silêncio parece causar ainda um rumor.

As pessoas não sabem, mas o silêncio é a voz de Deus.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Quanto vale uma Olimpíada?

Em entrevista concedida à Folha de S. Paulo, a lendária ex-ginasta Nadia Comaneci declarou que não apoiava os protestos contra as Olimpíadas de Beijing, a serem realizadas entre os dias 8 e 24 de agosto. A tocha olímpica vem sendo acolhida por vaias e muita água por onde passa, em manifestações de repúdio à ocupação do Tibet e ao desrespeito pelos direitos humanos por parte do governo chinês, mas a romena não vê relação entre o panorama político e o esporte. "O esporte é uma política em si", teoriza. Logo ela, cujas 9 medalhas conquistadas nas Olimpíadas de Montreal e de Moscou foram usadas como atestado de superioridade pelo regime soviético.

"Os Jogos estão sediados na China. Eles não serão os Jogos da China", argumenta Comaneci. Não é bem assim. Por mais opulenta que seja sua economia, o governo chinês não investiria bilhões de dólares em um evento que não fosse lhe dar uma contrapartida. Sediar uma competição de vulto como as Olimpíadas é, antes de tudo, uma demonstração de força – econômica e, principalmente, geopolítica.

Quando a Alemanha nazista sediou as Olimpíadas, em 1936, Hitler viu uma grande oportunidade de alardear os feitos do seu regime e, para isso, ergueu 8 novas instalações esportivas, ampliou o estádio olímpico para 110 mil lugares e abriu as portas para as emissoras de TV, tudo em prol das maiores Olimpíadas de que o mundo já tivera notícia até então. Hoje, a China está um verdadeiro canteiro de obras. Sem contar o imponente Estádio Nacional, conhecido como “Ninho”, outros 31 estádios e 45 centros de treinamento já foram construídos ou modernizados para as Olimpíadas. Novas leis, como a que regula o fumo em lugares públicos, recentemente aprovada, moldam o país ao gosto dos turistas estrangeiros.

4.066 atletas de 49 países compareceram aos jogos de Berlim. Era o Período Entre-guerras, e a maioria dos governantes europeus hesitava em contrariar os alemães, acreditando que, assim, evitaria outro episódio tão destrutivo quanto a I Guerra Mundial. Dois anos mais tarde, a Tcheco-Eslováquia seria sacrificada em nome de uma tênue situação de paz. Como a História conta, nada disso bastou para os nazistas.

Em tese, a China não representa uma ameaça bélica. O Oriente Médio e a Coréia do Norte são os barris de pólvora da vez, aos olhos das superpotências mundiais. Ela não é tanto uma nação hostil, mas sim uma aliada que ninguém quer perder. A ideologia da qual o regime chinês se declara seguidor adapta-se cada vez mais ao capital. É o melhor dos dois mundos: em questões sócio-ambientais, a China se comporta com a mesma irresponsabilidade que as potências capitalistas de hoje exibiam no século XIX e, munida de uma legislação que só valida aquilo que vem do Partido Comunista, ainda pode calar todas as vozes dissonantes.

A exuberância financeira atrai países em desenvolvimento, como o Brasil, ansiosos por descobrir seu segredo, e coloca até os EUA no cabresto (a China possui U$1 trilhão em papéis da dívida americana). Empresários aprendem mandarim, economistas se deslumbram com o sucesso econômico aparentemente indestrutível, veículos de comunicação publicam longas reportagens especiais sobre o fenômeno chinês. A história e a cultura chinesas, fascinantes, estão aí há milênios, mas também havia milênios que não despertavam tanto interesse no Ocidente. Faltava o componente monetário.

Se a China não tivesse a riqueza que tem hoje, será que tantas nações hesitariam em tornar pública sua discordância política? O boicote a esta edição das Olimpíadas, longe de ser um “absurdo”, como classificou Comaneci, sinalizaria que nem todos os países do mundo são coniventes com uma nação que cresce à custa das vidas de seus cidadãos. Solidariedade não tem preço.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Um tiro surdo


Era o dia 24 de agosto de 1954 e um homem, em uma suíte elegante de certo palácio no Rio de Janeiro, armou-se de um colt calibre 32, encostou-o junto ao próprio peito e docilmente, magicamente, saiu da vida para entrar na História.

A mão não lhe terá tremido nem ao menos no último instante?, anseio aflito.