sábado, 9 de fevereiro de 2008

Notas melancólicas - Parte 6


Será mesmo a morte um remédio para todos os males, um porto de inteira segurança? Será a morte melhor que uma vida amarga? Acordei-me no meio da noite com essas singulares dúvidas. Olho no relógio da cabeceira da cama: são quatro horas da madrugada; a pior hora para o insone, configurando-se cedo demais para acordar e tarde demais para se tentar dormir novamente. A insônia é um dos sintomas mais comum aos melancólicos; notívagos são geralmente pessoas deprimidas, pobres coitados condenados a sofrer noites e noites em claro.

Estirado no leito e sem dormir, miro a janela de meu quarto e um pedaço do céu ainda negro recai sobre mim. Escuto um ou outro veiculo passar na rua. Fecho os olhos na forma do velho costume dos que dormem e rumino se teria um motivo qualquer para contentar-me por coisa alguma. Andara particularmente mórbido nos últimos dias; os livros “a ler” jaziam sepultados na prateleira do quarto. Talvez fosse mesmo melhor ficar na cama.

Eu ainda não sabia exatamente que estava com o dia condenado quando o relógio deu cinco horas e os primeiros pássaros se fizeram ouvir. Desconfiava que tivesse um dia ruim pela frente, claro, mas ainda não obtivera toda a certeza disso. O bocado de céu que eu via pela janela já clareara, anunciando que o dia avançava. Nelson Rodrigues estava ao alcance de minha não, ao lado do relógio da cabeceira, mas eu não o conseguia ler por mais de cinco ou seis linhas. Não mais. Fizera os mais hercúleos esforços para prosseguir na leitura do Anjo Pornográfico, levando-o comigo para onde quer que fosse, mas, ainda assim, a coisa não se deu e o abandonei, juntamente com algumas anotações que rascunhara em algumas folhas soltas que agora voam indiscriminadamente pelo chão empoeirado do quarto.

Gastei bastante tempo olhando as folhas voarem de um lugar para o outro; embaixo da cama e junto à porta, folhas por toda parte. Pouco depois das dez horas da manhã, decido levantar-me; dia já claro e trânsito intenso na rua. Abri totalmente a janela e olhei para fora com alguma dificuldade inicial devido à claridade da luz, mas logo a vista pesava sobre o melancólico terreno baldio à frente do prédio. Sinto, de repente, uma enorme vontade de fumar, mas já ultrapassara a cota semanal de cigarros permitidos, de modo que nada mais poderia fazer a não ser deixar o tempo escoar devagarzinho. Um tempo cheio de dor.

Ligo a TV e vejo uns palestinos protestando contra os mais recentes ataques de Israel a uma escola na região da Faixa de Gaza, ou coisa que o valha. Morreram algumas crianças na investida militar, mas amanhã mesmo serão vingadas por algum grupo radical islâmico. Por livre associação de idéias, ocorre-me à mente que foram os autores árabes do século IX os responsáveis por estabelecer a correlação astrológica entre humores e planetas. O humor sangüíneo corresponderia a Júpiter; o colérico a Marte, deus da guerra; o fleumático a Vênus ou à Lua; a melancolia estaria sob signo de Saturno, planeta distante, de lenta evolução. Assim, a associação entre Saturno e melancolia foi inevitável. Até hoje o qualitativo “soturno”, corruptela de Saturno, é sinônimo de melancólico.

Mas nem sempre Saturno foi designado como o deus da melancolia. Na verdade, a versão dos povos árabes foi sendo construída paulatinamente ao longo de séculos de tradições milenares. Na versão grega, temos um Saturno como uma divindade contraditória, que tanto abençoava as colheitas como também devorava a carne humana. Já para os romanos, Saturno era exclusivamente ligado à semeadura. Havia até as Saturnálias, precursores do nosso Carnaval moderno, festas caracterizadas por libertinagens públicas promovidas pelos romanos para agradecer a Saturno pelas colheitas provenientes do ano anterior. Por fim, Saturno seria fundido, dentro do sincretismo greco-romano, em uma entidade responsável pela invenção da cunhagem de moedas; um Saturno mais “funcional”.

Desligo a TV, afinal, tenho coisas mais importantes a fazer, embora não saiba ainda exatamente como elas devem ser feitas ou se devem mesmo ser feitas. “Diabos, árabes e dúvidas demais me deixam ainda mais melancólico”, penso, constatando que meu dia ainda estava longe do fim.

Um comentário:

Bruno Pontes disse...

Bravo. Espero que as folhas espalhadas pelo chão do quarto sejam devidamente recolhidas. Vindo de quem vem, só podem ser escritos de uma qualidade superior.