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Evadir-se de si e esquivar-se dos outros, eis aí a fórmula para se dormir o sono dos justos.
por rodolfo preto, bruno pontes, débora medeiros, yuri leonardo, roberta félix, alan santiago e henrique araújo
Sempre pegava o ônibus naquele horário de quinze pras dez da noite, muito perfumado, banhado, de calça de flanela e camisa sem manga. E o tijolão debaixo do braço. E era só Grande Clássico da Literatura Universal: Tolstoi, Machado, Dostoievski, Hemingway, Stendhal. O trocador desconfiava de que aquilo era pretexto, ou melhor, pré-texto, pra posar de intelectual e garantir papo com a primeira universitária arrumadinha que sentasse no banco ao lado. E aquele monte de músculo lá sabia ler!
Talvez os livros não servissem só de enfeite, ou talvez tudo aquilo se tratava de mais algumas peripécias de um sujeito de boa lábia. Cassandra, Helena, Mônica, Sandrinha, Érica ou Nádia se aproximaram muito do rapaz perfumado de pouco antes das dez da noite. A conversa iniciava sobre Natasha Rostova ou Julien Sorel. Depois trocava-se celulares e uma promessa de se encontrar naquele ônibus, naquele mesmo horário.
Era só estratégia? Ninguém sabia. Mas todo aquele jogo parecia funcionar muito bem com as jovens garotas que sentavam ao lado do morenão. Estratégia mesmo devia ser carregar aqueles livros, com aquele porte físico, num ônibus que tinha como rota o campus de humanidades da universidade federal, duas universidades particulares e um núcleo de línguas estrangeiras. Certamente não faltaria companhia para puxar assunto com a máxima bem piegas: “você acha que a Capitu traiu mesmo Bentinho?”.
Gosto de sussurros. Gosto daquilo falado em voz baixa, transmitido como se segredo fosse. Agrada-me o sigilo belo e profundo das coisas murmuradas; serenas palavras pronunciadas como se fossem a continuação de meus próprios pensamentos, completando-os. Ouvir a voz interna me interessa mais, mesmo quando tenho que ouvi-la em condições tão impróprias como as atuais, nas quais o barulho se faz como uma constante. Ora, se está difícil ouvir o outro, o que dirá escutar-nos a nós mesmos.
Outro dia li uma crônica do jornalista e escritor Fausto Wolff (1940) e não pude conter um sorriso (interno) de satisfação espiritual. Eis um homem que semeia a voz interna em tempos de voz alguma. Transcrevo um trecho do texto, tão sobriamente rico em sentimento. Os parêntesis são meus.
A nova geração, que nasceu depois de 1964, vem ao Veloso (bar em Ipanema, Rio de Janeiro, conhecido, nos anos 70, como reduto de boêmios e intelectuais cariocas) berrar besteiras com suas possantes motos em dia de futebol para esmagar os sacões da velharia. Uma amiga minha disse que esses moços fazem tanto empurro porque o silêncio do deserto mental os perturba e além disso têm o piupiu pequeno. Esses eunucos mentais não sabem dos fantasmas que vivem no Veloso. Os motoristas de ônibus, caso soubessem, seriam mais respeitosos. Irritados, os fantasmas de vez em quando tiram uma cadeira do lugar, dão um cascudo num adolescente, levantam a saia de alguma senhora para não serem esquecidos.
Andando pelas ruas da cidade, eu me pergunto o motivo pelo qual se faz tanto barulho por praticamente tudo. Parece-me que a lógica alvoroçada da humanidade é sempre ostentar o ruído, seja lá em qual ocasião for.
Nosso barulho só não é ainda maior porque precisamos ouvir, de vez em quando, o barulho alheio, a fim de termos um pouco de certeza de que o nosso próprio barulho está sendo minimamente compreendido por nós e pelos outros; há uma “auto-regulação barulhesca” que, ao menos na aparência, ordena o caos rumoroso de nosso santo ruído de cada dia.
Bem-aventurados os surdos, porque lhes são permitidos momentos de audição interna.
Em uma época tão barulhenta como a nossa, busco o silêncio. Aliás, o meu silêncio é motivo de espanto para o vizinho, que veio interrogar-me, no elevador, se eu havia saído da cidade durante o fim de semana. Respondi-lhe que não, que havia ficado em casa.
Assustado, ele confessou-me.
“Mas é que como eu não ouvi nada durante todo o fim de semana, pensei que você tivesse viajado ou algo assim".
Pois é. No mundo de hoje, as pessoas espantam-se com o sossego. Ao que me parece, a simples ausência de barulho as deixam desconfiadas. Acostumaram-se com o tumulto dos tempos modernos de tal jeito que simplesmente desaprenderam a escutar o silêncio. Neste mundo turbulento, somente o silêncio parece causar ainda um rumor.
As pessoas não sabem, mas o silêncio é a voz de Deus.
Em entrevista concedida à Folha de S. Paulo, a lendária ex-ginasta Nadia Comaneci declarou que não apoiava os protestos contra as Olimpíadas de Beijing, a serem realizadas entre os dias 8 e 24 de agosto. A tocha olímpica vem sendo acolhida por vaias e muita água por onde passa, em manifestações de repúdio à ocupação do Tibet e ao desrespeito pelos direitos humanos por parte do governo chinês, mas a romena não vê relação entre o panorama político e o esporte. "O esporte é uma política em si", teoriza. Logo ela, cujas 9 medalhas conquistadas nas Olimpíadas de Montreal e de Moscou foram usadas como atestado de superioridade pelo regime soviético.
"Os Jogos estão sediados na China. Eles não serão os Jogos da China", argumenta Comaneci. Não é bem assim. Por mais opulenta que seja sua economia, o governo chinês não investiria bilhões de dólares em um evento que não fosse lhe dar uma contrapartida. Sediar uma competição de vulto como as Olimpíadas é, antes de tudo, uma demonstração de força – econômica e, principalmente, geopolítica.
Quando a Alemanha nazista sediou as Olimpíadas, em 1936, Hitler viu uma grande oportunidade de alardear os feitos do seu regime e, para isso, ergueu 8 novas instalações esportivas, ampliou o estádio olímpico para 110 mil lugares e abriu as portas para as emissoras de TV, tudo em prol das maiores Olimpíadas de que o mundo já tivera notícia até então. Hoje, a China está um verdadeiro canteiro de obras. Sem contar o imponente Estádio Nacional, conhecido como “Ninho”, outros 31 estádios e 45 centros de treinamento já foram construídos ou modernizados para as Olimpíadas. Novas leis, como a que regula o fumo em lugares públicos, recentemente aprovada, moldam o país ao gosto dos turistas estrangeiros.
4.066 atletas de 49 países compareceram aos jogos de Berlim. Era o Período Entre-guerras, e a maioria dos governantes europeus hesitava em contrariar os alemães, acreditando que, assim, evitaria outro episódio tão destrutivo quanto a I Guerra Mundial. Dois anos mais tarde, a Tcheco-Eslováquia seria sacrificada em nome de uma tênue situação de paz. Como a História conta, nada disso bastou para os nazistas.
Em tese, a China não representa uma ameaça bélica. O Oriente Médio e a Coréia do Norte são os barris de pólvora da vez, aos olhos das superpotências mundiais. Ela não é tanto uma nação hostil, mas sim uma aliada que ninguém quer perder. A ideologia da qual o regime chinês se declara seguidor adapta-se cada vez mais ao capital. É o melhor dos dois mundos: em questões sócio-ambientais, a China se comporta com a mesma irresponsabilidade que as potências capitalistas de hoje exibiam no século XIX e, munida de uma legislação que só valida aquilo que vem do Partido Comunista, ainda pode calar todas as vozes dissonantes.
A exuberância financeira atrai países em desenvolvimento, como o Brasil, ansiosos por descobrir seu segredo, e coloca até os EUA no cabresto (a China possui U$1 trilhão em papéis da dívida americana). Empresários aprendem mandarim, economistas se deslumbram com o sucesso econômico aparentemente indestrutível, veículos de comunicação publicam longas reportagens especiais sobre o fenômeno chinês. A história e a cultura chinesas, fascinantes, estão aí há milênios, mas também havia milênios que não despertavam tanto interesse no Ocidente. Faltava o componente monetário.
Se a China não tivesse a riqueza que tem hoje, será que tantas nações hesitariam em tornar pública sua discordância política? O boicote a esta edição das Olimpíadas, longe de ser um “absurdo”, como classificou Comaneci, sinalizaria que nem todos os países do mundo são coniventes com uma nação que cresce à custa das vidas de seus cidadãos. Solidariedade não tem preço.
Era o dia 24 de agosto de 1954 e um homem, em uma suíte elegante de certo palácio no Rio de Janeiro, armou-se de um colt calibre 32, encostou-o junto ao próprio peito e docilmente, magicamente, saiu da vida para entrar na História.
A mão não lhe terá tremido nem ao menos no último instante?, anseio aflito.