domingo, 20 de janeiro de 2008

Queimem a bruxa!, e outras manobras semelhantes

Não foi a primeira vez que isso aconteceu, e nem vai parar por aí...

Na última quinta-feira, dia 17, o Procon iniciou uma série de apreensões no estado de Goiás. Os alvos da Ação Civil Pública
2002.38.00.046529-6 eram os jogos “Everquest” e “Counter-Strike”, o último muito popular nas lanhouses brasileiras, considerados impróprios para o consumo por serem vistos como nocivos à saúde dos consumidores através dos artigos 6, I, 8, 10 e 39, IV, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

O que se pode ler no próprio site do Procon-GO como justificativa para tal decisão é isso:

O jogo “Counter Strike” (reféns, bomba, fuga, assassinato, armas, técnicas de guerra, táticas de guerrilha) reproduz a guerra entre bandidos e policiais e impressiona pelo realismo. O jogo foi criado nos Estados Unidos e adaptado para o Brasil. No vídeo-game, traficantes do Rio de Janeiro seqüestram e levam para um morro três representantes da Organização das Nações Unidas. A polícia invade o local e é recebida a tiros.

O participante pode escolher o lado do crime: virar bandido para defender a favela sob seu domínio. Quanto mais PM´s matar, mais pontos. A trilha sonora é um funk proibido. Nessa escala de violência, cada um escolhe suas armas: pistolas, fuzis e granadas. Na visão de especialistas, o jogo ensina técnicas de guerra, haja vista o jogador deve ter conhecimento sobre táticas de esconderijo, como se estivesse numa guerrilha.

O jogo “Everquest” leva o jogador ao total desvirtuamento e conflitos psicológicos “pesados”; pois as tarefas que este recebe, podem ser boas ou más. As más vão de mentiras, subornos e até assassinatos, que muitas vezes depois de executados, o jogador fica sabendo (ou não) que era apenas uma armadilha para ser testado para entrar em um clã (grupo).

Os jogos violentos ou que tragam a tônica da violência são capazes de formar indivíduos agressivos, sobressaindo evidente que é forte o seu poder de influência sobre o psiquismo, reforçando atitudes agressivas em certos indivíduos e grupos sociais.


Pelo visto, o pessoal do Procon esqueceu de especificar que o jogo “Counter-Strike” é um mod muito popular de um jogo chamado Half-Life. O artigo da Wikipédia deixa tudo bem explicado. O sistema dessa modificação se tornou popular pela simplicidade e versatilidade: você pode escolher diferentes mapas para travar seus combates virtuais com jogadores interligados em rede local ou mundial. O pacote original – baixado facilmente em qualquer site de downloads, ou comprado em lojas de eletrônicos – já contem alguns mapas para o usuário. No entanto, há possibilidade de aumentar ainda mais o seu acervo de mapas, baixando as áreas de combate pela internet, em sites especializados.

Um dos mapas fabricados por programadores amantes do jogo é justamente o tal do “CS_Rio”, exibido como definição completa do "Counter-Strike" lá na notícia do Procon-GO. A área virtual, que representa uma favela do Rio de Janeiro – com barracos, boteco, fusquinha e até um campinho de futebol – foi criada pelo programador Rogério Sodré, conhecido nos grupos de jogadores como Mataleone, também criador de outros mapas nacionais, um ambientado em São Paulo, e outro em Curitiba. Entrevistado pelo site CS WEB, Mataleone diz que o principal motivo para ter criado o mapa foi a preferência de usuários brasileiros por desejarem jogar em uma favela.

Já olhando para o lado do “Everquest”, um MMORPG que dá liberdade ao jogador em escolher tarefas e construir um personagem mau ou bom, nota-se essa mesma semelhança com a realidade, ao ficar evidente a liberdade de escolha que o jogador pode ter. Mesmo não sendo tão famoso quanto “Counter-Strike”, Everquest é somente um entre tantos outros MMORPG’s que possibilitam essa capacidade de escolha entre bem e mal.

Porém, o que me chamou muita atenção foi o último parágrafo da página. Há uma classificação etária para esses produtos, ditada através da Portaria 1.035 de 2001, do Ministério da Justiça. Atualmente, no Brasil existem 159 jogos inadequados para menores de 18 anos e 187 são impróprios para menores de 16, por conterem violência, consumo de drogas, linguagem inapropriada e insinuações de sexo e nudez.

Voltando ao trecho, a justificativa diz que tais jogos “são capazes de formar indivíduos agressivos...”. Ora, já existe a tal classificação etária, além de cinco projetos de lei, na Câmara dos Deputados, que proíbem a entrada de menores de 16 anos nas lans houses (propostas n° 5447, 5378, 5009 de 2005, e o PL 4361/2004). É até compreensível a ausência de fiscalização online – é praticamente impossível checar o conteúdo de todos os computadores e servidores nacionais – mas, ao menos nas lojas, deveria existir uma maior fiscalização na venda e distribuição desses jogos. Mais do que isso: deveria haver fiscalização em lanhouses, fiscalização dos pais...

Deveria, deveria, deveria...

Essa medida da última quinta-feira(17) mais parece manobra de juízes e advogados para arrecadarem uma grana a mais. Quando li a notícia, no portal da Uol, logo me lembrei da velha cena dos caipirões na praça, segurando foices e facões, gritando “Queimem a bruxa!”. Os exemplos clássicos de mídias sendo culpadas e estigmatizadas por anomalias sociais são diversos: o psiquiatra alemão Fredric Wertham acusando histórias em quadrinhos a transformarem crianças norte-americanas em homossexuais; o pastor Josué Yrion em sua cruzada contra “los nintendos”; as várias lendas urbanas sobre discos da Xuxa... Nada impede de algum político associar o crescimento do número de lanhouses nas periferias das grandes capitais com o aumento dos índices de criminalidade.

Videogames podem treinar você a matar? Steven Poole, autor do livro “Trigger Happy – Videogames and the Etertainment Revolution”, responde de maneira simples. Ele relembra sua infância, quando seu esporte favorito no colégio era a esgrima. Escreve: "eu fui treinado para manejar minha arma favorita, um sabre, com grande velocidade e precisão. As espadas que nós usávamos não tinham ponta, e todos nós vestíamos proteções e máscaras. Mas eu estava perfeitamente equipado para, se eu quisesse, fazer a ponta da minha espada e usar isso para cortar fora membros de meus colegas em poucos movimentos. Não há dúvidas que minha capacidade potencial em matar era aprimorada por minhas atividades de esgrima. Mas não havia motivações para que esse tipo de atividade fosse compreendido como um 'treinamento".

É fato que, assim como todo tipo de produto simbólico, jogos eletrônicos podem ser usados para outros fins além do entretenimento. Seguindo o exemplo dado por Poole, um jovem que jogue o recente “Call of Duty 4” pode já ter alguma noção de batalha em solo iraquiano – aliás, existem jogos especialmente criados no intuito de recrutamento, como o American Army, patrocinado pelo próprio Pentágono. Do outro lado, existem aqueles que defendem o uso de videogames por conta do efeito catarse, onde os jogos eletrônicos causam benefícios em "exaurir" a agressividade em um contexto não-destrutivo (assunto pesquisado por G. I. Kestenbaum e L. Weinstein, em "Personality, Psychopathology and Developmental Issues in Male Adolescent Video Game Use").

Lembrei agora que sadismo e muito sangue não existem apenas em jogos como Manhunt, Carmaggedon ou o lendário G.T.A. . No cinema , recentemente tivemos a série Jogos Mortais (Saw, no original), uma coletânea das mais absurdas torturas e execuções em formato pastelão hollywoodiano.

Os pais sabem o que seus filhos estão jogando, assistindo, lendo? Eles deram suportes suficientes para que seus filhos também tenham responsabilidade sobre o consumo dessas formas simbólicas? Ainda um pouco mais sobre a (falta de) responsabilidade no uso de um tipo de mídia, podemos levantar o raciocínio além e se perguntar quantas medidas tomadas pelo governo são feitas para apenas amansarem nossos sentimentos de pavor e medo relativos às mazelas sociais.

Proibir estes jogos vai diminuir violência? Aumentar fiscalizações vai diminuir violência? Pergunto-me se a grande onda de ações emergenciais que nos atingiu recentemente – ações rasteiras contra o aquecimento global, cortes de impostos, balelas sobre legalização do aborto, rondas dos quarteirões – realmente resolvem o problema; se, no fim das contas, algumas dessas ações servem apenas como um calmante em dose cavalar, que aquieta, de súbito, nossa sensação de pavor e medo, nos deixando com um sorriso bobo, forçando-nos a aceitar um possível destino trágico sem se questionar, apenas feliz e seguro de que está tudo bem...

...de que está tudo aparentemente bem.

4 comentários:

Rafael Salvador disse...

Muito bom esse texto! E digo mais: apesar de toda essa confusão, daqui a alguns anos os senhores radical-conservadores (eu sei lá como chamar esse povo...) darão lugar às gerações que tiveram contato com videogames, rpgs, quadrinhos, banheira do Gugu, etc etc... A tolerância, um dia, virá naturalmente. É o que eu acho, e espero que aconteça.

P.s.1: Esqueceste de falar do RPG e da campanha da BAND contra o Yu-Gi-Oh... fica aí um link pra quem quiser se aprofundar mais.

http://www.daemon.com.br/rpg_inocente.asp

P.s.2: Meu filho vai ser criado à base de videogame e filmes do Tarantino!

P.s.3: imagina só quando sair o 4...

Roberta Felix disse...

Primeiro eu digo: não jogo Mario, nem joguinhos de tabuleiro, nem baralho, nem paciência; não jogo nada.

Tem uma coisa que me intriga: nunca vi alguém defender o acesso a jogos violentos se a pessoa não usa os mesmos. O que eu quero dizer é que as pessoas que estão a favor do acesso a esse material são pessoas que tem algum benefício com isso (entretenimento ou lucro). É o que eu vi, até agora...

Sobre as medidas de alívio... Certo, deveria haver mais controle dos pais, uma formação reforçada de valores humanos etc etc. Mas é fato que essa formação está falhando. Digo isto em relação a outras tantas situações. Então o governo vai deixar tudo nas mãos das pessoas, não vai fazer nada? Deveria investir em outras ações, mas pra curto prazo o que funciona é baixar portaria e proibir. É simples, efetivo e todo mundo entende. E outra, às vezes é uma medida pra maquiar a coisa, faz parecer que a parte dele foi feita e a situação não muda muito.

Mais uma coisa: acredito que tal material poderia ser muito bem aproveitado nesse esquema de catarse. Mas pra que seja catarse e não estímulo a comportamentos agressivos, é necessária aquela boa base que, infelizmente, nem todo mundo tem.

Débora Medeiros disse...

A questão se parece muito com a da classificação indicativa da TV: é uma medida que existe pra auxiliar os adultos a saber o que sua criança deve ou não assistir, de acordo com a formação dada em cada família. A classificação indicativa existe para indicar, não pra barrar da programação o que acha inadequado - critério subjetivo que varia de pessoa pra pessoa e realmente não deve ser decidido pelo Estado.

Os jogos são classificados por conteúdo e faixa etária há bem mais tempo que os programas de TV. Acho essa a medida mais essencial. O que falta, nesse caso, é a divulgação entre os adultos da classificação etária em jogos. Proibir é uma medida mais vistosa e compreensível pra qualquer um, mas não é a mais eficaz. Seu filho pode comprar uma cópia pirata bem debaixo do seu nariz.

Pra variar, faltam campanhas de conscientização, que prescindam de extremismos como essas proibições.

Imperador Vermelho disse...

Pessoas são violentas.Elas eram violentas antes dos jogos eletrônicos,antes da televisão,antes até da escrita.
As pessoas que reagem de forma violenta quando expostos à materiais de violência explícita,tais como os jogos citados,são pessoas que já possuem alguma predisposição à violência.
Não há provas que levem a concluir que videogames conduzam a um comportamento agressivo,porém há estudos que demostram que esse comportamento pode ser influênicia do círculo social do indivíduo ou de sua genética.
Mas é muito mais fácil culpar algo inanimado.