Certa vez, um camaradinha veio me falar sobre a idéia de outro camaradinha fazer trabalhos fotográficos e audiovisuais sobre os mendigos que zanzam pelas redondezas do campus do Benfica. Fiz logo cara azeda.
Lembrando de umas conversas que participei e umas coisas que já tinha lido, minha expressão fechada foi mais pelo fato de achar que um trabalho desses requer maturidade. Eu não me atreveria a fazê-lo, sendo sincero. Teria de ter muito cuidado pra não cair nos moldes de miséria em preto e branco, tão conhecidos na universidade.
Essa estética que me amedronta é simples. Do preto e branco, muitas vezes nem sequer há conversa com a pessoa, ou pior, o objeto vítima das lentes. Põe-se um amiguinho ali ao lado, finge-se fotografá-lo e, desviada a câmera um pouco para o lado onde o enquadramento for mais eficaz, é disparado o obturador. A imagem é transportada para o computador, retira-se sua matiz, aumenta contraste daqui, diminui luminosidade dali, consegue-se o tom dramático da imagem e pronto: uma nova foto é adicionada no álbum do orkut.
Miséria em Preto&Branco é aqui apenas um mero termo ilustrativo. Meu medo não é que essa ausência de cor se torne piegas demais nesse tipo de trabalho. Meu temor é ver a “juventude esclarecida” de câmera em punho, retratando essas cenas somente para dizer que é socialmente engajada, não dando nenhuma continuidade crítica a um trabalho desses. E, indo mais além, seria assustador saber de, por exemplo, fotos de crianças famintas expostas nas paredes de um museu com pessoas fumando charutos e bebendo champanhe numa vernissage, e nenhuma reflexão ou mudança de postura sobre o assunto depois disso.
A Susan Sontag escreve, no livro “Diante da dor dos outros”, que fotografias são meios de tornar real, ou ainda mais, assuntos que pessoas socialmente privilegiadas talvez preferissem ignorar. Concordo com ela, porém, pra trabalhos que relacionam mídia e miséria, os autores precisam mais do que ter como objetivo chocar o leitor da imagem. Nesse mesmo livro, também é citado o trabalho Krieg dem Kriege! (Guerra contra guerra!), do fotógrafo Ernst Friedrich. O livro, uma terapia de choque imagética, traz mais de 180 fotos de arquivos médicos de guerra. Inicia-se com soldadinhos de brinquedo e canhões de brinquedo. Termina com veículos destroçados, soldados agonizantes, crianças armênias esqueléticas e corpos dilacerados. O protesto de Ernst até rendeu muitas cópias do livro. Era uma tentativa de acabar com a guerra, publicado em 1924.
Talvez o choque não funcione tão bem quanto acreditem os seus defensores. É uma ferramenta dúbia, que beira entre a
erudição do pensamento e a
representação grosseira. Fora dos domínios daquele que o usa, o ato pode afastar aqueles que já estão distantes do tema, e ainda pode gerar repugnância por parte daqueles que estão no contexto.
A busca por uma "responsabilidade imagética" na elaboração de um conceito-chave para a construção de um projeto desses seria ideal. Isso traria certo domínio sobre o mecanismo do Choque, se é necessário usá-lo e como usá-lo. Acredito que maturidade seja ideal nesse ponto, além de um longo tempo refletindo sobre o projeto. Daí eu não me atrever a fotografar esse assunto, somente quando eu achar que já tenho maturidade suficiente pra isso. E pra isso, haja tempo vivido e prática.
3 comentários:
Texto muito bom, Yuri. Leva ao tipo de reflexão que se espera de trabalhos sérios envolvendo elementos como a guerra e a miséria.
Você tocou em um ponto essencial: é preciso ter maturidade e refletir bastante pra fazer isso com seriedade. Acho que, se o objetivo é mesmo transmitir a outras pessoas uma realidade distante (ou afastada) que precisa ser vista, é preciso tratar isso com respeito, sem leviandade. Não dá pra você fotografar uma criança faminta pensando no que vai comer de almoço ou no filme da Sessão da Tarde...
Não se deve evitar trabalhar com temas chocantes, mas eles requerem ainda mais reflexão que os outros. E requerem sentir o que seu objeto sente, para não tratá-lo com desrespeito.
Yuri,
Seu texto merece um troféu joinha!
O que eu tenho visto é muito molequinho com câmera em punhos tentando brincar de Sebastião Salgado.
Só que o Sebastião Salgado não é só um cara fodão que fotografava a miséria em Preto&Branco. Ele enxerga além das lentes. Às vezes penso que através da pele e até do corpo. É possível sentir a dor aguda da fome. É possível sentir o desespero das pessoas.
Mas pra mim, o grande mérito do cara não é ver através das pessoas. É ver através dos tempos. É vislumbrar um resultado daquele trabalho. É fazer válida a sua denúncia e útil o seu esforço.
É ter visão de presente, visão de futuro e principalmente vontade de mudar alguma coisa.
Para além do álbum do orkut. :}
Como sempre, muito bom com as palavras. Concordo contigo; por mais benevolente que seja a inciciativa de fazer um projeto de tal pronfudidade, deve-se ter em mente que são pessoas e não somente objetos de estudo.
Muitos não têm essa preocupação, na verdade nem tomam conhecimento ou refletem sobre este tipo de trabalho.
Infelizmente está na "moda" abordar a miséria, as favelas, a fome do povo...
Bem, é isto. Até mais xD
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