"Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de uma multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas".
Umberto Eco, professor e escritor italiano, têm 76 anos de idade.
por rodolfo preto, bruno pontes, débora medeiros, yuri leonardo, roberta félix, alan santiago e henrique araújo
Ao mirar-me no espelho do banheiro esta manhã, pude deparar-me com um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar frouxo e pômulos pálidos. Há três meses não como nem durmo direito e encontro-me levemente desnutrido. Não obstante os enormes esforços, é-me impossível pôr um sorriso na face por mais de três ou quatro segundos. Estou verdadeiramente arrebentado de todas as vísceras, órgãos e membros ao passo em que verto sangue pelas gengivas ao tentar escovar os dentes.
“Quem é você?”, indago-me angustiado.
“Eu sou a morte”, respondo-me melancólico.
Decerto, não há nada mais absurdamente miserável e melancólico do que remeter-nos à ocasião do enterro de Wolfgang Amadeu Mozart, o grande compositor erudito. Mozart morreu pobre e, abandonado, teve seu corpo enterrado em uma vala comum. Não havia uma viva alma para prestar-lhe as últimas homenagens quando, no cemitério, seu corpo sumiu embaixo de terra e lama, uma vez que chovia na circunstância. Uma chuvinha fina, porém melancólica e persistente. O coveiro que o enterrou, muito provavelmente, não fazia idéia da dimensão da alma que aquele corpo encerrou. Enterrou-o como o fizera com tantos outros indigentes naquele dia, e no anterior, e no anterior.
Se eu lá estivesse, Mozart, dir-te-ia, ao pé da cova, as seguintes palavras, as mesmas que gostaria ouvir, eu próprio, no dia de minha morte.
Eu sofria honestamente por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado, e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonho de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes do que eu, e procurava e sondava os mistérios da nossa natureza moral, uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade.
A idade avança e insiste em jogar-me para escanteio, a tornar-me um sujeito desinteressante, a fazer-me ainda mais comum. A minha juventude, tangida por uma enfadonha ingenuidade barata, transmudou-se em um estéril ceticismo espiritual, a fazer-me de mim um elemento impotente. Entre a singeleza e a debilidade, encontro-me na mediocridade pertencente a aqueles que sabem que o um fim nada glorioso nos aguarda. Como nos escreve Bandeira, “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Nem nunca o será.
O marulho emanado pela agitação das ondas marítimas lembra que o mundo já foi um lugar relativamente calmo de se habitar. As claridades do céu e das areias atestam que já foi mais fácil ouvir o silêncio de um mar calmo arrebatado de espumas doces e leves a ir e vir, a ir a vir sem grandes preocupações. Maior que mar, talvez, só o silêncio que ele exalta.