sábado, 19 de abril de 2008

Notas melancólicas - parte 16


Não me lembro exatamente, mas a minha primeira experiência melancólica na literatura foi com o Augusto dos Anjos e eu não devia ter mais do que 15 anos de idade. A obra do poeta paraibano foi um dos marcos da minha juventude, evidenciando-me a precoce melancolia. O pessimismo tétrico do escritor enchia minha pobre alma de medo e desesperança. Aos 15, o que me interessava realmente era decadência; eu buscava uma espécie de ruína existencial. Eu era um adorador de sarjetas, e Augusto dos Anjos era a minha conexão com a morte, com o sujo. Meu único objetivo era o fim, e Augusto era o meio.

Entretanto, para muito além de todo o vocabulário cientificista empregado nos poemas, o que mais me cativava o espírito era mesmo a biografia do poeta. É aquela coisa: quando se tem 15 anos de idade, é-se facilmente impressionável, e eu não saberia aqui mensurar o impacto que tive ao ler os poemas e, logo depois, descobrir que o autor havia morrido precocemente. De imediato, minha mente juvenil e pessimista vislumbrou a conexão entre a morte prematura de Augusto e seus poemas que versam sobre a morte. E isso me bastava: ali estava meu ídolo. Um homem com uma trágica biografia escrevendo sobre as coisas funestas da vida.

Por esses dias andei relendo o Eu e Outras Poesias* e constatei que os poemas nem o homem que os lê são mais os mesmos. A impressão profunda deixada outrora não mais me acometeu. O terremoto moral e existencial ocasionados pela leitura dos poemas não se deu, como antigamente. Claro, Augusto dos Anjos sempre será um dos nossos melhores poetas. A beleza dos escritos, a riqueza dos versos clássicos, a precisão científica, as imagens vigorosas construídas pelos vocábulos, o pessimismo dramático, a retórica bem organizada, a força do asco e da morte valorizados em versos plenos de emoção e vivacidade, tudo isso me faz ter a certeza que Augusto dos Anjos é um grande poeta da Língua Portuguesa, hoje e sempre.

Se já não tenho aquele pessimismo estéril da juventude, restou-me a resignação de um envelhecimento que se aproxima; uma serenidade à vista. De Augusto dos Anjos, desejo mais do que a morte pura e simples – escolho a honestidade, a finura e a beleza de seus versos.

Versos como os que se seguem, comoventes até a raiz da alma, escritos para o filho morto logo após o parto. Impossível lê-lo incólume, Augusto dos Anjos nos revela a honestidade dos sentimentos, enquanto nos destila uma dose cavalar de verdadeira amargura dramática.

Soneto

Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?

Porcão de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!

Ah, possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!

* Eu e Outras Poesias é uma coletânea de poemas de Augusto dos Anjos publicado em 1912 e escritos entre 1901 e 1910, ou seja, entre os 17 e 24 anos de idade do autor. Talvez isso seja o fato mais assombroso quando se lê a história de vida de Augusto: com tão pouca idade, foi capaz de escrever sonetos eternos e cravar o nome como grande poeta da literatura brasileira. Augusto dos Anjos morreria em 1914 de pneumonia, na cidade de Leopoldina (MG), apenas dois anos após o lançamento do livro.

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