Dessa cena, contada no livro Buddy Bolden’s Blues, de Michael Ondaatje, não é possível saber precisamente o quanto é relato verdadeiro e o que está ali como parte do encanto da narração. E essa impressão acompanha o leitor ao longo de todo o livro – que é romance, não biografia. Michael deve ter andado por aqueles caminhos uma série de vezes, para sentir o que restava da atmosfera da Nova Orleans do começo do século XX, a fim de descrever tal ambiente em sua obra com a maior fidelidade possível à sua importância na história do jazz.
“Quando ele enlouqueceu tinha a mesma idade que tenho agora”. Quem enlouqueceu foi Charles “Buddy” Bolden, tocador de cornetim numa banda de blues e editor de um pequeno jornal de escândalos, que ganhava a vida como barbeiro. Ele fascinava pelo seu jeito de fazer música: tocava “de ouvido”, improvisava, levava a platéia no clima contagiante que sabia criar. Foi um dos primeiros a misturar blues com hinos de igreja, mas infelizmente não há qualquer gravação de Bolden tocando. Entre 1900 e 1907 ele e sua banda foram considerados os melhores de Nova Orleans. A vida comum de homem casado, com dois filhos, era perturbada pelo álcool e pelos hábitos estranhos de Buddy. Até que, em abril de 1907, tocando com a Henry Allen’s Brass Band num desfile pelo subúrbio de Storyville, ele enlouqueceu. Internado aos 31 anos, viveu num asilo psiquiátrico até morrer, em 1931, aos 54 anos. Quem se inspirou na biografia incomum e cheia de lacunas do músico foi Michael Ondaatje, escritor de ficção, poesia e memórias; autor de O Paciente Inglês (livro transformado em filme em 1996 pelo diretor Anthony Minghella, recebendo o Oscar de melhor filme em 1997). Nascido em 1943, no Sri Lanka, tornou-se cidadão canadense em 1962, onde mora atualmente. Premiado internacionalmente, tem cerca de 27 obras publicadas, escritas entre 1967 e 2007. Buddy Bolden’s Blues foi lançado em 1976, com o título original de Coming through slaughter (“Vindo através de um massacre”, numa tradução livre). O título Buddy Bolden’s Blues foi sugerido pelo próprio Ondaatje para o lançamento em outros países.
A história é contada de maneira muito particular. Tanto pelo estilo não-linear do autor como pela influência do ritmo do jazz, a música que envolve todo o universo de Bolden. Vozes diferentes dividem a narrativa; o narrador, o autor, o protagonista, documentos históricos, personagens reais e fictícios. Essas variações formam uma composição singular, com cenas e descrições fortes; em um movimento ora sutil, ora bruto. Os diálogos pedem leitura mais atenta: não se tem indicação clara de quem fala, se o discurso é direto ou indireto, se é pensamento ou voz audível. Ondaatje pretendia “pensar com o cérebro e o corpo” de Bolden para bem contar a vida do músico em seus últimos meses de sanidade. Em Buddy Bolden’s Blues, revela-se o talento do autor para preencher a falta de informações biográficas precisas com a imaginação sensível de um romancista que utiliza a poesia e a criatividade para enriquecer a obra. Como Buddy Bolden, que tirava notas vigorosas do ar, soprando-o pelo cornetim, e deixou marca do seu estilo na história do jazz.
O tradutor e a editora
Esta edição de Buddy Bolden’s Blues tem tradução de Paulo Henriques Britto; poeta, contista, tradutor de poesia e prosa e professor de Estudos da Tradução. Dentre os 86 livros que já traduziu, alguns dos autores são Jack Kerouac, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Sigmund Freud e Lord Byron. Uma de suas traduções mais famosas é O guia do mochileiro das galáxias, de Douglas Adams (com Carlos Irineu da Costa). A editora Companhia das Letras publicou, além de Buddy Bolden's Blues, outras obras de Michael Ondaatje: Bandeiras Pálidas e O Paciente Inglês.
Buddy Bolden's Blues (Coming through slaughter, no original), de Michael Ondaatje em tradução de Paulo Henriques Britto. Editora Companhia das Letras, 176 páginas. R$ 38,50 (preço da editora).